Livro da Vida
LIVRO DA VIDA "Santa Tereza Dávila"
Quem é Teresa de Ávila? Uma mulher que fala de Deus. Fala de Deus como de Alguém conhecido. Quem mergulhar na leitura destas suas Obras terá a real impressão de que ela se encontrou com Ele, antes de se pôr a escrever.
Mas nem todos viram a Santa de Ávila por esse prisma, houve quem dissesse tratar-se de uma mulher inquieta, andarilha, desobediente e teimosa, que a título de devoção inventava más doutrinas, andando fora da clausura, contra o que ordenara o Concílio de Trento e os prelados; ensinando como mestra, contra são Paulo, que ordenara às mulheres não ensinar.
Teresa de Ávila teve por inimigos aqueles que viam em nossa monja um perigo permanente: ela se apresentava como modelo de liberdade e de acesa busca do Absoluto, caminheira incansável e defensora da verdade. As ações, palavras e escritos dessa mulher audaciosa perturbaram a tantos, mas iluminaram a muitos outros em seu tempo e ao longo da história. A sua doutrina tornou-se um texto de indiscutível sabedoria, onde todos vão beber com segurança, em busca de uma autêntica experiência de Deus.
Teresa nasceu em 28 de março de 1515, em Ávila, e morreu em 4 de outubro de 1582, em Alba de Tormes. Viveu 67 anos, dos quais apenas vinte de intensa atividade como fundadora, escritora, contemplativa e caminheira de Deus pelas terras da Espanha do século XVI.
Em 1538, abandona o convento para restabelecer-se de uma enfermidade misteriosa que quase a levou à morte. A leitura do famoso livro Abecedário espiritual, do franciscano Francisco de Osuña, será para a jovem madre Teresa o início do despertar espiritual e do amor pela oração. O encontro com as Confissões de Santo Agostinho constituirá também uma retomada da vida de oração, ante a angústia que vai tomando forma em sua vida. Nesse processo, a presença de São Pedro de Alcântara, franciscano austero, um pouco extravagante em penitência, mas possuidor de grande sabedoria, será para a santa auxílio determinante.
O duro período da reforma teresiana encontra madre Teresa atenta aos sinais do Espírito, sempre pronta a trabalhar sem desanimar em favor da obra que iniciara. Nem mesmo o seqüestro e prisão de João da Cruz no cárcere conventual de Toledo abatem o espírito dessa mulher, totalmente entregue à ação de Deus, tornada instrumento em Suas mãos. Ao redor da contemplativa carmelita encontramos um séquito de discípulos que passa a seguir sua doutrina. Assessorada por teólogos, doutos e sábios, consegue fugir à caçada da Inquisição. Problemas internos à reforma dos descalços a preocupam, mas sua personalidade de madre e fundadora não permite que dissensões internas entravem o assentamento da obra.
Ela ensina comprometendo-se pessoalmente: o que ela viveu é suporte do que propõe; o leitor saberá como pensa e vive a autora, como ora, que se passa entre ela e Deus, entre ela e os demais. E se sentirá pessoalmente atingido, interpelado, chamado. Não será fácil seguir indiferente ao testemunho espiritual dessa mulher ou impedir que adentre o próprio espaço interior.
1. Quisera eu que, assim como me mandaram e deram ampla licença para escrever o modo de oração e as mercês que o Senhor me tem concedido, também ma dessem para que, com muita freqüência e clareza, dissesse os meus grandes pecados e vida ruim; isso seria para mim grande consolo. Mas não quiseram e, antes, preferiram que a isso me restringisse. E por isso peço, por amor de Deus, que quem ler este relato da minha vida tenha diante dos olhos que fui tão ruim que não encontro santo dentre os que voltaram para Deus com quem me consolar. Porque considero que depois de o Senhor os ter chamado, não O tornavam a ofender. Eu não só voltava a ser pior, como parecia estudar a maneira de resistir às mercês que Sua Majestade me concedia, como quem se visse obrigado a servir mais e percebesse não ser capaz de pagar parte mínima do que devia.
2. Bendito seja Ele para sempre, que tanto me esperou; e, com todo o meu coração, suplico me dê graça para, com toda clareza e verdade, fazer este relato que meus confessores me mandam. Que o Senhor o quer, eu o sei há muitos dias, mas não me atrevi; e que seja para glória e louvor Seu e para que, doravante, conhecendo-me eles melhor, ajudem-me na minha fraqueza para que eu possa compensar algo do que devo ao Senhor, a Quem sempre devem louvar todas as coisas. Amém.
Meu pai era homem muito caridoso com os pobres e piedoso com os enfermos e até com os criados; tanto que jamais se pôde conseguir que tivesse escravos,3 porque tinha deles grande dó. Estando certa vez uma escrava de um seu irmão em sua casa, ele a tratava como a seus filhos. Dizia que o fato de não ser ela livre em nada prejudicava a sua piedade. Era muito sincero. Ninguém jamais o viu praguejar ou murmurar. Era de extrema honestidade.
2. Minha mãe também tinha muitas virtudes e passou a vida com grandes enfermidades. Grandíssima honestidade. Embora muito bela, nunca deu ensejo a que se pensasse ser ela vaidosa, porque, apesar de morrer aos trinta e três anos, seu traje já era o de uma pessoa de muita idade. Muito pacífica e de grande entendimento. Foram enormes os trabalhos por que passou enquanto viveu. Morreu muito cristã mente.
6. Eu dava esmola como podia, e pouco podia. Procurava a solidão para rezar as minhas devoções, que eram muitas, em especial o rosário, de que a minha mãe era muito devota, e, assim, nos fazia sê-lo. Gostava muito, quando brincava com outras meninas, de fazer mosteiros, como se fôssemos monjas; e parece-me que eu desejava sê-lo, embora não tanto quanto as outras coisas de que falei.
7. Recordo-me de que, quando minha mãe morreu, eu tinha doze anos, ou um pouco menos.6 Quando comecei a perceber o que havia perdido, ia aflita a uma imagem de Nossa Senhora e suplicava-lhe, com muitas lágrimas, que fosse ela a minha mãe. Parece-me que, embora o fizesse com simplicidade, isso me tem valido; porque reconhecidamente tenho encontrado essa Virgem soberana sempre que me encomendo a ela e, enfim, voltou a atrair-me a si.7 Incomoda-me agora ver e pensar no motivo por que não me mantive íntegra nos bons desejos com que comecei.
Teresa não era poeta, mas às vezes via-se levada a compor “de repente versos muito sentidos”; o mesmo que lhe ocorria com a música: não tinha afinação, mas caía em êxtase ouvindo por exemplo irmã Isabel de Jesus cantar. Entre seus poemas, há alguns compostos sob a pressão das graças místicas: “Vivo sem viver em mim”
2. Comecei a enfeitar-me e a querer agradar com a boa aparência, a cuidar muito das mãos e dos cabelos, usando perfumes e entregando-me a todas as vaidades. E eram muitas as vaidades, porque eu era muito exigente.3 Não tinha má intenção, não desejava que alguém ofendesse a Deus por minha causa. Durou muitos anos esse requinte demasiado, ao lado de outras coisas que não me pareciam pecado. E agora vejo que mal deviam trazer.
Começou esta boa companhia a desterrar os costumes que a mal tinha feito, a tornar a pôr no meu pensamento desejos das coisas eternas e a tirar algo da grande repugnância que eu tinha em ser freira, que se me tinha tornado grandíssima. E, se via alguma religiosa derramar lágrimas quando rezava, ou outras virtudes, tinha-lhe muita inveja. Era tão duro meu coração que, se lesse toda a Paixão, não chorava uma lágrima; isto causava-me pena.
Ao vestir o Hábito, logo o Senhor me deu a entender como favorece aos que se esforçam para O servir. Isto ninguém apercebeu em mim, mas sim uma grandíssima vontade. Na altura deu-me um tão grande contentamento de ter aquele estado, que nunca jamais me faltou até hoje. Deus mudou a aridez da minha alma numa grandíssima ternura. Davam-me deleite todas as coisas da Religião. E verdade é andar algumas vezes varrendo nas horas que costumava ocupar em meus regalos e enfeites, e, lembrando-me que estava livre daquilo, me dava um novo gozo que me espantava e não podia entender por onde me vinha.
Quando disto me lembro, não há coisa que se ponha diante de mim, por difícil que seja, que duvide de acometê-la. Já tenho experiência em muitas que, se de princípio me esforço a me determinar a fazê-lo (sendo só por Deus), Ele quer -para mais merecermos - que a alma sinta aquele pavor até o começar e quanto maior este, for, se vai por diante, maior e mais saboroso o prêmio se torna depois. Até mesmo nesta vida dá a paga Sua Majestade por vias que só.quem goza disso o entende. Isto sei-o por experiência, como tenho dito, em muitas coisas difíceis; e assim, jamais aconselharia, se fosse pessoa que tivesse de dar parecer que, quando uma boa inspiração nos bate à porta muitas vezes, se deixe com medo de a pôr por obra. Se é desnudamente só por Deus, não há que temer suceda mal, que poderoso Ele é para tudo. Seja bendito para sempre. Amém.
Como já o Senhor me tinha dado o dom de lágrimas e gostava de ler, comecei a ter esses momentos de solidão e a confessar-me amiúde e a começar aquele caminho tendo aquele livro por mestre; Livro: «Terceiro Abecedário».porque eu não encontrei mestre - digo confessor que me entendesse -, embora procurasse durante vinte anos, depois do que estou a dizer. Isto fez-me muito dano e voltar muitas vezes atrás e até de todo me perder, porque, se o tivesse, ajudar-me-ia a sair das ocasiões que tive de ofender a Deus.
Agora parece-me que o Senhor proveu a que não encontrasse quem me ensinasse, porque fora impossível - segundo julgo - perseverar os dezoito anos que passei este trabalho e em todos eles grandes aridezes, por não poder, como digo, discorrer. Em todos eles, a não ser acabando de comungar, jamais ousei começar a ter oração sem um livro. Temia tanto minha alma estar sem ele na oração, como se contra muita gente saísse a pelejar. Com esta ajuda - que era como que uma companhia ou escudo em que aparava os golpes dos muitos pensamentos - andava consolada porque a aridez não era o normal, mas, sempre que me faltava livro, logo se desbaratava a alma. E os pensamentos, que andavam perdidos, com isto os começava eu a recolher e a levar a alma como de um fôlego. Muitas vezes, em abrindo o livro, nada mais era preciso. Outras lia pouco, outras muito, conforme a mercê que o Senhor me fazia.
Parecia-me a mim, nestes princípios que digo, que, tendo eu livros e com ter solidão, não havia perigo que me arrancasse de tanto bem; e creio que - com a ajuda de Deus - fora assim, se tivesse tido mestre ou pessoa que me avisasse de fugir das ocasiões nos princípios e me fizesse sair, com brevidade, se nelas entrasse. E, se então o demónio me tivesse acometido a descoberto, julgo que, de modo algum, eu voltaria a pecar gravemente. Mas foi tão subtil e eu tão ruim, que todas as minhas determinações de pouco me aproveitaram, ainda que de muitíssima ajuda os dias que servi a Deus, para poder sofrer as terríveis enfermidades que tive, com tão grande paciência como a que Sua Majestade me deu.
Muitas vezes tenho pensado, espantada, na grande bondade de Deus e a minha alma tem-se regalado de ver a Sua grande magnificência e misericórdia. Seja bendito por tudo! Tenho visto claramente Ele não deixar sem paga, até mesmo nesta vida, nenhum desejo bom. Por ruins e imperfeitas que fossem minhas obras, este Senhor meu as ia melhorando e aperfeiçoando e dando valor. Os males e pecados logo os escondia. Até os olhos de quem as viu permite Sua Majestade fiquem como que cegos e lhos tira da memória; doira as culpas; faz resplandecer uma virtude que o mesmo Senhor põe em mim, fazendo-me quase força para que a receba.
1. Esqueci-me de dizer como, no ano do noviciado, passei grandes desassossegos em coisas que em si tinham pouco tomo. Culpavam-me sem ter culpa muitas vezes. Eu levava isto com muita pena e imperfeição, embora com o grande contentamento que tinha de ser freira, por tudo passava. Como me viam procurar solidão e chorar algumas vezes meus pecados, pensavam que era descontentamento e assim o diziam.
Era afeiçoada a todas ás coisas de religião, mas não a sofrer nenhuma que parecesse menosprezo. Gostava de ser estimada. Era primorosa em tudo quanto fazia. Tudo me parecia virtude, embora isto não me seja desculpa, porque em tudo sabia procurar o que me contentasse e assim a ignorância não tira a culpa.
Pois, logo que soube isto, comecei a mostrar-lhe mais afeição. Minha intenção era boa, a obra má; pois para fazer bem, por grande que fosse, não havia de fazer um pequeno mal. Tratava com ele mui de ordinário de Deus. Isto devia-lhe ter aproveitado, embora mais creio fez ao caso o querer-me muito. Para me dar prazer veio-me trazer aquele idolozito, que logo fiz deitar a um rio. Tirado este, começou - como quem desperta de um grande sono - a ir-se lembrando de tudo o que havia feito naqueles anos. Espantando-se de si, doendo-se da sua perdição, começou a aborrecê-la. Nossa Senhora deve-o ter ajudado muito, pois era muito devoto da Sua Conceição e nesse dia fazia uma grande festa. Enfim, deixou de todo de vê-la e não se fartava de dar graças a Deus por ter-lhe dado luz.
Não dizer mal de ninguém, por pouco que fosse, Em geral evitava toda murmuração, porque trazia muito diante dos olhos como não havia de dizer nem querer que dissessem de outra pessoa o que eu não quereria dissessem de mim.
Era amicíssima de ler bons livros.
Quisera eu persuadir a todos a serem devotos deste glorioso Santo (São José), pela grande experiência que tenho dos bens que alcança de Deus. Não tenho conhecido pessoa que deveras lhe seja devota e lhe presta particulares obséquios, que a não veja mais aproveitada na virtude; porque aproveita de grande modo às almas que a ele se encomendam. Parece-me que há alguns anos que, cada ano no seu dia, lhe peço uma coisa e sempre a vejo realizada; se a petição vai algo torcida ele a endireita para maior bem meu.